quarta-feira, 4 de maio de 2005

Um Dia de Fúria

Se existe um dia da semana que eu detesto, esse dia é quarta-feira. As quartas parecem debochar de mim, avisando que o último fim de semana já passou há dois dias e que ainda faltam mais dois para o próximo. Fora isso, quarta-feira também é o rodízio do meu carro, o que me força a acordar ainda mais cedo para ir trabalhar de ônibus.

Entretanto, quis o destino que justamente nessa última quarta (04/05/2005) eu presenciasse uma das cenas mais surreais que já vi na vida. E justamente por ter ido trabalhar de ônibus. Eram aproximadamente 08h40 quando desci no meu ponto e peguei o caminho em direção à agência. A manhã estava fria, mas havia sol, o que tornava a caminhada agradável. Andava despreocupado, olhando para o chão. Então, faltando exatamente um quarteirão para chegar ao serviço, enquanto atravessava um cruzamento, um som bem conhecido chamou minha atenção: pneus cantando no asfalto.

Como que desperto de um transe, ergui a cabeça a tempo de ver dois carros, uma Mercedes e um Gol, rodopiando simultaneamente na pista, próximo ao farol onde eu me encontrava. Não sei explicar como isso começou, parece que a Mercedes fechou o Gol pela direita, os dois deram um pequeno "encostão" e isso desencadeou o balé de mais de duas toneladas de metal. Num esforço tremendo, o motorista do Gol conseguiu controlar o veículo e parou exatamente de frente para uma pequena clínica de entrada recuada. Aproveitando o momento, o Gol entrou e estacionou na clínica.

Já a Mercedes não teve tanta sorte. Rodou duas vezes, tentou se estabilizar, mas não conseguiu. Mesmo freando, ele derrapou no lado oposto à clínica, batendo de frente na lateral de um outro Gol, estacionado perto da esquina do cruzamento, cerca de cinco metros à minha frente. No mesmo instante vi os pneus direitos desse Gol serem prensados contra a calçada, além de imaginar o estrago no lado do impacto. Pude ver, também, que o motorista da Mercedes era um senhor de idade, já com seus setenta anos.

Foi então que, sem mais nem menos, o motorista da Mercedes, aproveitando que o trânsito estava parado – o que lhe concedia espaço suficiente – engatou a ré, saiu de "dentro" do Gol estacionado e, fazendo uma curva surpreendentemente rápida, acelerou como nunca e mirou o Gol que havia parado na clínica. O motorista do Gol, que estava quase saindo do carro, não teve outra alternativa a não ser entrar novamente no veículo. O impacto foi fulminante. A Mercedes jogou o Gol para dentro do estacionamento da clínica, fazendo-o atravessar uma grade de ferro, arrancar uma base de concreto e derrubar o corrimão de metal que ficava na escada da entrada. O Gol só não caiu em uma vala que havia após a grade porque ficou prensado entre uma árvore e a Mercedes, mas isso não o impediu de ficar na perpendicular.

Não contente com sua performance, o velhinho da Mercedes saiu do carro, dirigiu-se ao Gol esmagado e, apontando freneticamente o dedo para o outro motorista, gritava algo como "Tá vendo? Você não queria bater? Pois então, agora bateu!". Nesse momento o local já estava repleto de curiosos. O motorista do Gol teve que sair pela janela do carro, visto que a porta estava inutilizada. Percebi que era um homem forte e sua estatura era quase o dobro da do velhinho. Mesmo assim, ele trazia no rosto uma expressão que mesclava pânico e incompreensão, e sequer respondia às acusações do inflamado ancião. Terminando de despejar todo o vocabulário de palavrões existente, o motorista da Mercedes simplesmente virou-se, saiu andando e foi trabalhar a pé, deixando o carro ligado.

Recuperado do espetáculo, também fui trabalhar. Chegando na agência, relatei o ocorrido e eis que surge a ideia: voltar ao local do acidente, munido de uma câmera, e registrar os fatos. Assim fiz, acompanhado de mais um colega de serviço. Nesse momento já haviam chegado viaturas da polícia e o dono do Gol prestava depoimento. Pelo que pude escutar, os dois carros já vinham se "estranhando" desde outras ruas, resultado de um retrovisor quebrado. Entre as dezenas de curiosos, também ouvi que o motorista da Mercedes era dono de uma clínica ali perto e foram chamá-lo. Meu colega ainda comentou: "Depois dessa, espero que ele não seja dono de uma clínica psiquiátrica!".

Finalmente o velho chegou, aparentando uma serenidade de monge tibetano. Solícito, apresentou seus documentos aos policiais e começou a conversar. Nesse momento consegui bater as fotos que desejava e fomos embora, o espetáculo havia terminado. O que impressionou foi a resistência da Mercedes, a qual sofreu dois impactos frontais e sofreu apenas amassados leves no capô, enquanto o Gol não teve a mesma felicidade.

Isso me fez pensar bastante. Quase nunca me envolvo em discussões de trânsito, mas, depois disso, passarei a tomar um cuidado redobrado. Nunca se sabe quem está atrás do volante. Um simpático velhinho pode ser tornar, de uma hora para outra, uma máquina assassina. Apesar de tudo, deve-se considerar a iniciativa do velho. Em poucos segundos destruiu dois carros mais a entrada de uma clínica apenas para satisfazer seu ódio. Ele fez o que muitos de nós gostaríamos de fazer, mas nunca tivemos coragem (ou dinheiro) o suficiente.


Finalizando, para provar meu relato, abaixo estão os links para as fotos que tirei. Na segunda e terceira imagem é possível ver o dono da Mercedes dentro do carro, entregando os documentos aos policiais: