Como já não tenho paz e não desejo levar isso para o túmulo, finalmente decidi desabafar. Relato a seguir os fatos tais como realmente aconteceram:
A sala estava cheia. Diversas mesas dispostas aleatoriamente reuniam grupos de quatro ou cinco de nós ao seu redor. Cada grupo envolvido em suas atividades, e cada indivíduo concentrado nos seus afazeres.
Apesar disso, havia conversas e risadas – muitas vezes para aliviar a tensão do que estávamos fazendo. Para muitos ali, era a primeira vez que se deparavam com algumas daquelas tarefas e instrumentos.
Eu mesmo estava nervoso, pois a coisa toda não era fácil e exigia muita coordenação. A simples ideia de não conseguir terminar nos apavorava. Nós ouvíramos histórias do que acontecera a quem não concluía o que lhes fora ordenado, e eram terrivelmente assustadoras.
Talvez esse medo tenha influenciado meus atos.
Lá estávamos nós, reunidos e concentrados no trabalho quando, em uma impensada atitude –para mostrar aos outros que eu era ousado e destemido – ergui a tesoura até a altura da minha testa. Os olhos assombrados de toda a mesa se voltaram para mim. Sentindo a adrenalina tomar conta do meu corpo e sabendo que, depois disso, minha reputação cruzaria oceanos, não titubeei.
Puxei uma mecha dos meus cabelos (naquela época a franja quase me cobria os olhos) e, com um movimento seco e certeiro, cortei-a com a tesoura, jogando-a no chão. Os colegas ao redor não acreditaram no que viram. Naquele momento, eu estava acima de todos eles. Eu era o melhor. O mais admirado. Eu reinava absoluto e nada poderia me deter. Nada!
A não ser, é claro, o infortúnio. Minha reputação teria cruzado oceanos e hoje eu estaria em alguma cobertura em Dubai, dando festas memoráveis e sendo idolatrado em todo o mundo. Mas quis o destino que o caminho levasse a um desfecho diferente, ali mesmo, naquela mesma tarde.
Foi quando ela surgiu. Ela sempre passava por ali, mas nunca lhe déramos atenção. Ela era quase invisível para nós. Mas, naquela tarde, ela parou ao meu lado. Foi quando o meu reinado desmoronou.
A tia da limpeza, que varria a sala, abaixou e pegou a mecha do meu cabelo. Olhando para nós, ela perguntou: – Quem fez isso? Silêncio. Ela insistiu. Ninguém abriu a boca. Então ela olhou para nós, um por um, até que seus olhos pararam em mim. Eu usava um cabelo ‘tigelinha’ e não era difícil perceber que algo faltava na minha testa. Ela esticou o braço e encaixou a mecha de cabelo na falha da minha testa, tal qual uma peça de quebra-cabeça.
No mesmo instante ela me pegou pelo braço e me levou à sala da diretora. Um pavor inominável se apoderou do meu corpo. Eu não conseguia pensar, não conseguia falar e nem respirar. As lágrimas já brotavam dos meus olhos. O terror do desconhecido fazia meu coração parar.
Não ouvi direito o que a faxineira e a diretora diziam. Algo como “poderiam ter se machucado” ou coisa assim. A diretora olhou para mim e perguntou: – Quem fez isso?
Então eu, que minutos antes transbordava autoconfiança e poder, derreti-me em um pedaço de geleia e, entre soluços, covardemente exclamei: – Foi o Fabinho!!!
E chamaram o Fabinho, que estava sentado ao meu lado. E o Fabinho, aos prantos, negava veementemente ter feito aquilo. O Fabinho levou uma bronca. Ele não ajoelhou no milho, não ficou trancado no quarto escuro onde habitava o monstro e nem foi tirado para sempre do seio de sua família, como nas histórias que ouvíramos. Mas levou uma bronca. E eu também. Mas a culpa ficou com Fabinho.
Voltamos à mesa, para continuar nosso trabalho da Pré-Escola, de colagem e pintura. Mas as coisas haviam mudado. Eu não era mais o maioral. E o Fabinho chorava, sendo consolado pelos outros colegas. Eu me senti um verme desprezível, mas, por medo e vergonha, jamais contei a verdade. Até hoje.
Hoje expurgo esse sentimento de mim. Hoje faço as pazes comigo mesmo, revelando ao mundo essa atitude covarde e criminosa que escondi de todos desde o ano de 1980.
Hoje, ainda que tantos anos tenham passado, posso ao menos reconstruir a cena na minha mente e, quando a fatídica pergunta me é feita mais uma vez, tenho a coragem de encher o peito e exclamar aliviado:
– Não foi o Fabinho!
E do Fabinho, nunca mais tive notícias – espero que esse incidente não o tenha levado para uma vida de crimes e perdição. Do Pré fui para a 1ª série, em outra escola, e jamais tive contato com a velha turma.
Se você, que está lendo esta bombástica revelação, conhece o Fabinho, que estudou na Escolinha Padre Raposo, em 1980, na Rua Cuiabá, na Mooca, peço-lhe a gentileza de compartilhar este texto até que chegue às mãos dele. Nunca é tarde para corrigir os erros do passado.